sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Duas tábuas, uma câmera e uma paixão

Amir Labaki

O cinema de Eduardo Coutinho é uma arena na qual pessoas contam fragmentos de histórias. Verdadeiras ou falsas, ficcionais ou reais, adulteradas ou intactas, emprestadas ou próprias. Neste sentido, “Moscou”, seu novo filme, representa uma ruptura menos radical do que nos parece em primeira impressão.

Pela primeira vez numa década, desde a consagradora acolhida a “Santo Forte” (1999), Coutinho abandona por completo o dispositivo do “cinema de conversa”. Dois documentários que rodou neste período já haviam ido além do mecanismo da entrevista. “Peões” (2004) o complementa com material de arquivo do movimento operário no ABC do começo dos anos 1980. “Jogo de Cena” (2007), por sua vez, embaralha depoentes e atrizes, testemunho, auto-ficção e ficção de origem real.

“Moscou” concentra-se agora apenas em intérpretes profissionais. Se antes os atores eram convidados a emprestar suas personas a histórias verdadeiras alheias, agora são levados a emprestar suas vivências a um drama ficcional de Tchecov.

Não se trata de teatro filmado, de um “making of” de uma peça, ou sequer de um documentário sobre os bastidores de uma montagem. “Moscou” contém elementos desses três subgêneros mas é uma obra híbrida e originalíssima. Não é um filme “sobre” alguma coisa. “Moscou” é “Moscou” é “Moscou” – uma experiência ímpar construída a partir de fragmentos de motivação variada, registrados durante os ensaios encomendados para uma montagem teatral descompromissada de gerar um espetáculo autônomo.

Coutinho convidou o Grupo Galpão e o diretor Henrique Dias, que jamais trabalhara com a trupe mineira, para colaborar em três semanas de filmagens de um exercício teatral em cima de “As Três Irmãs” de Tchecov. “O importante na obra de Tchecov”, disse ele a “O Globo”, “é que ela é inacabada, incompleta, fragmentada, precária. São peças sem trama e sem final. Foi isso que me interessou na peça. E no meu cinema também é assim”.

Creio haver mais um motivo. “As Três Irmãs” é uma peça protagonizada por mulheres. Também é assim o cinema de Coutinho, com raras exceções, “Peões” sendo a principal.

Este texto em pedaços serve como uma luva para seu documentarismo despedaçado. “Moscou” não resume “As Três Irmãs, tampouco é uma análise do texto, ao contrário por exemplo da brilhante operação de Al Pacino em “Ricardo 3º – Um Ensaio” (1996).

Para emprestar um termo hitchcockiano, “As Três Irmãs” é apenas o “MacGuffin” para Coutinho realizar “Moscou”. “MacGuffin”, segundo Hitchcock, é o pretexto dramático (o desaparecimento de uma senhora, por exemplo) que serve como motor para o desenvolvimento de uma de suas aventuras. A aventura de Coutinho é registrar em movimento criativo os corações, corpos e mentes de um grupo excepcional de atores e atrizes orientados por um dos principais diretores de teatro do país. É um “MacGuffin” nobre e exigente, mas um “MacGuffin”.

Esse dispositivo fílmico não tem precedentes na obra de Coutinho mas ainda assim o resultado rima no todo e em inúmeras sequências com seus filmes anteriores. Eis logo de saída a tradicional introdução em sua própria voz, com Coutinho explicando pessoalmente, para o Galpão, Dias e nós espectadores, o jogo que propõe. “Meu cinema”, frisa o diretor na entrevista citada, “é um cinema que fala sobre o que é fazer cinema”.

O espaço me limita a dois outros exemplos. Alguns minutos mais tarde, eis Henrique Dias fazendo “Coutinho”. Ele convida os intérpretes a apresentar depoimentos pessoais que mobilizem uma memória afetiva similar a de personagens da peça. A auto-ficção tão cara a Coutinho mais uma vez pede passagem, e o fará em vários momentos posteriores.

Mais perto do fim, Roberto Carlos. Na cena mais bela de “Moscou”, tanto do ponto de vista plástico quanto dramático, um casal de atores entoa, a capella e à luz de fósforos, “Como Vai Você”. Coutinho celebra assim, mais uma vez, a música que, em sua obra, congraça a sensibilidade popular brasileira. “Moscou” é aqui.

“Moscou” não é o “filme de teatro” de Eduardo Coutinho. Seria ainda mais simples entender isso se pudesse vir a ser visto algum dia em sessão dupla com o delicado “Era Preciso Fazer as Coisas” (2007, inédito no Brasil), documentário português em que Margarida Cardoso radiografa o processo existencial de uma montagem de “Tio Vânia” do mesmo Tchecov. Coutinho investiga, sim, mais uma vez, o que é o cinema, libertando o documentário brasileiro do monopólio do assunto. Nesta operação sensibilíssima, testa o filme como nosso instrumento de pesquisa para saber porque vivemos, porque sofremos.

07/08/2009 - É tudo verdade

Contato: labaki@etudoverdade.com.br

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